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Vida y Pensamiento Revista Teológica de la
Universidad Bíblica Latinoamericana Volumen 36 Número 2 - Segundo
Semestre 2016 - San José, Costa Rica La promesa de la
herencia |
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500 Anos da Reforma Luteranismo e Cultura nas Américas pp. 9-31 VÍTOR WESTHELLE |
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Resumen: El texto presenta y discute, desde una perspectiva
histórica y sistemática, la presencia del luteranismo en las dinâmicas
culturales del continente. Propone que la rememoración de la Reforma es una
ocasión fundamental para pensar nuestro propio tempo y sus exigencias. Abstract: The text discusses, from a historical and
systematic perspective, the presence of Lutheranism in the cultural dynamics
of the continent. It proposes that the celebration of the Reformation is an
occasion to think about our own times and their demands. Palabras claves: Reforma, Lutero, América Latina, teología
latinoamericana, Pensamiento latinoamericano. Keywords: Reformation, Luther, Latin
America, Latin American theology, Latin American thought. |
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Sem
dúvida, somente a humanidade redimida poderá apropriar-
se totalmente do seu passado. Isso
quer dizer: somente para a humanidade redimida o passado é citável, em cada
um dos seus momentos. ... A verdadeira imagem do passado perpassa, veloz. O passado só se deixa
fixar, como imagem
que relampeja
irreversivelmente, no momento em que é reconhecido
... Pois irrecuperável é cada
imagem do passado que se dirige ao presente,
sem que esse
presente se sinta
visado por ela. ... Articular historicamente o passado não significa conhecê-lo "como ele de fato
foi". Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo. ... Em cada época, é preciso arrancar a tradição ao conformismo, que quer apoderar- se dela. Walter Benjamin, Sobre o Conceito de
História Inicio com esta citação de Walter
Benjamin por dois
motivos que gostaria de ressaltar. Primeiro é que todo
passado que não é rememorado como um evento que
interfere no presente é uma perda que
nos distancia da felicidade (redenção). E este é o
passado dos vitimados pelas barbáries de uma história acomodada ao silêncio. Por
alguma conjuntura histórica Lutero,
perseguido como foi, escapou deste olvido e isto continua enriquecendo
a humanidade, ainda que tenha sido ajustado à “tradição ao conformismo”. O
segundo motivo é que neste rememorar o reformador insere-se no nosso presente
como um “relampejo em momento de perigo” a favor dos que foram e são como ele
perseguidos. Não se trata portanto de reverenciar uma figura monumental a ser
estudada como se estuda um arquivo para estabelecer aquilo “como de fato foi”. Quando o monge agostiniano Martim Lutero, no
dia 31 de
outubro de 1517 afixou
na porta da igreja do castelo de Wittenberg suas 95 teses sobre a venda de
indulgências, desencadeando assim o movimento de reforma da igreja, os
europeus celebravam ¼ de século de presença na América Latina. Não consta na
imensa obra de Lutero qualquer referência à Conquista muito embora as atrocidades cometidas pelo regime
das encomendas, imposto pelas coroas ibéricas, não
fosse segredo na
Europa. Aliás,
o único das principais personagens da Reforma que denunciou virilmente os abusos foi o reformador
de Strassburg, Martim Bucer. Mas existem algumas coincidências que vinculam de maneira curiosa Lutero à América Latina. Em 1525 Lutero publica sua obra o Servo Arbítrio defendendo a
passividade da fé (ao contrário da atividade efetiva do amor) contra Erasmo
de Roterdham que tinha simpatias pela Reforma, mas defendia o livre arbítrio em questões de
fé. Erasmo, brilhante
humanista de espírito gentil, não contestou a Lutero (até
por suas afinidades com a Reforma). No entanto, quem
escreve uma obra em resposta a Lutero
foi o dominicano Juan Ginés de Sepúlveda,
o infame defensor da guerra justa contra os
indígenas na América Latina. A postura ética de
Sepúlveda, tragicamente revelada na disputa
de Villadolid de 1550-51, contra
las Casas, acabou sendo decorrente de seu argumento dogmático de 1527
contra Lutero de que
fé pode ser
efetivamente imposta já
que esta é, para Sepúlveda, de livre escolha. Aí está
um dos “relampejos” de Benjamin, quando o que parece ser uma afetada disputa
dogmática sobre o livre arbítrio acabe tendo consequências ideológicas de grande monta e alto custo
humano ao justificar a guerra contra
indígenas por sua fé. Outra conexão entre
Lutero e o Novo
Mundo é ainda
mais curiosa. Nos autos-de-fé que eram promulgados contra os assim
chamado heréticos nas Índias
Ocidentais é que constava de 1520 até 1555
o seguinte veredito contra os indígenas pagãos e outros infiéis: “Deixaram este
reino para se tornarem luteranos”. Praticamente nada se sabia da teologia luterana nestas
latitudes, no entanto o nome de Lutero já era uma metonímia para rebeldia,
revolta e heresia. A figura
de Lutero foi
transfigurada para denotar rebeldia. Tal transfiguração,
mas por motivos opostos, aconteceu, mais recentemente, na América do Norte
quando um rapaz batista chamado de Michael King Junior decidiu já adulto
mudar seu nome para Martin Luther King Jr.
Seguiu sendo batista (ainda que concluísse um doutorado sobre um
teólogo Luterano, Paul Tillich). O que me interessa apresentar é a maneira como
Lutero é ou poderia ser de importância para a América Latina. Então
desenvolvo meu argumento em dois momentos. Um é puramente sócio-demográfico e está vinculado à expansão do protestantismo
e particularmente do luteranismo; o outro é de caráter teológico em que a teologia luterana de fato oferece opções para entender e operar em um continente dependente que busca sua autonomia e o direito de dizer sua própria palavra. O que vincula a reforma protestante ao movimento da
teologia da libertação é
o primeiro tema
que gostaria de
tratar neste estudo de mutuas relações entre a
Europa e a América Latina. Estas teologias
que se formaram em pontos diametricamente distantes do planeta tinham em comuns inícios modestos, tentativos, assim como também vigorosos e polêmicos que nasceram de um
clamor do povo ouvido por Deus. A voz profética se fez ouvir
nas incipientes articulações com a ousadia
de dizer a verdade em sua
plenitude, o que no Novo Testamento
é designado pela palavra parrhesia. Mas trata-se mais do que profecia. Esta palavra descreve com precisão a transição entre
o profeta e o apóstolo, aquele
que não apenas anuncia
julgamento e promessa, mas que também
se atém firme à palavra revelada do messias e a enuncia. Enquanto o profeta anuncia um futuro, o apóstolo é um enviado
a dizer que este futuro
se realizou e está a se realizar. A parrhesia, o falar com ousadia, vem da urgência apocalíptica de anunciar não o fim dos tempos, mas o tempo do fim.
Esta urgência apocalíptica se encontra tanto no conteúdo quanto no estilo que
constituiu o berço natal tanto
da Reforma quanto
da teologia da libertação. Uma olhada retrospectiva aos imensos
volumes produzidos e compilados de um Lutero, ou de um Zwinglio, Melanchthon, Bucer, Calvino, etc. nos distrai do fato que
assim não foram produzidos nem intencionados nas suas origens. Surgiram de um
confronto com os poderes que fez um monge dizer a custo da própria vida: “Aqui estou; de outra maneira não posso.” E, assim quem também conhece as publicações internacionalmente renomadas de
um Juan Luis
Segundo, Gustavo Gutiérrez, Joseph Comblin, Jon Sorbino, Leonardo Boff não se dá conta
que estão edificadas em
um movimento apocalíptico que começou por
dizer: “Deus acampou entre
nós”, “Deus ouviu
o clamor de seu povo”. Lutero, antes
detudoeraumteólogo ocasional e panfletário (Rubem Alves), mormente no período decisivo da Reforma, i.e.
a década que se
seguiu à divulgação das 95 Teses. Isto
significa que era
um teólogo contextual. Em
suas próprias palavras “só a experiência faz um teólogo” (TR #46), em meio as suas tribulações (Anfechtungen). Assim, como
lembra Melanchthon na
oração funeral de seu amigo, ele tampouco estava livre de
virulentas investidas que, diga-se, nem sempre foram
muito felizes. O próprio Lutero mencionava o fato de seus escritos serem considerados pelos
literatos da época como indoutos e panfletários, sem
a grandeza das sumas e dos compêndios dogmáticos—em suma
provocantes, irresponsáveis e irrelevantes—e ria-se disso. O próprio Melanchthon, achegado aos escritos sistemáticos da época, fazendo referência a tais
críticas responde com as palavras do humanista Erasmo: “Quando a
enfermidade é tão severa, Deus nestes últimos tempos (eis o motivo apocalíptico!) nos deu um médico ríspido”. Diferente não o foi com os primórdios
da teologia da libertação em que
se produziam localmente inúmeras publicações. Por exemplo: folhetos
impressos com mimeografo para o uso ocasional das comunidades de base, em folhetins de protestos do movimento estudantil e em cartazes que se afixavam em lugares
públicos, ou ainda em faixas em marchas de protesto.
E assim, como na Reforma em que as gravuras em litografia proviam
desenhos sarcásticos sobre
as condições vigentes, a proliferação de desenhos e caricaturas humorísticos descrevendo com sarcasmo a realidade latino-americana foi um fator
a não ser desprezado no desenvolvimento
da teologia da libertação. Estes recursos gráficos eram tanto um
motivo de humor que refletiam e criticavam condições sórdidas, como um
recurso pedagógico para
populações que, tanto na
Alemanha da Reforma como na América Latina, não liam com
muita desenvoltura, se
é que liam.
Então era esta
cultura panfletária, que no mundo literato é recebida com desdém, que
marca um vínculo a ser enfatizado entre a teologia da América Latina e a da
Reforma europeia. No caso da Reforma a proliferação dos
panfletos está documentada desde 1518 (Laube, Flugschriften) e compraz não apenas libelos de religiosos, mas de muita
“gente simples” (gemeine Mann),
trabalhadores manuais organizados em grêmios de artesões (Zünften),
espécie de sindicatos. Estes contribuíram com panfletos de sua autoria à causa protestante (Arnold, Handwerker als theologishe
Schriftsteller). Na América Latinaum processo similarse desenvolveu. A isto
se chamou de “pequena literatura” (Kleinliteratur: Brandt, Gottes Gegenwart) que aos poucos
foi recebendo articulações mais elaboradas e publicações que receberam, então,
a designação de teologia da libertação. Assim
como na Reforma houve um avanço
desta literatura seminal de panfletos a
disputas e já
então a tratados mais elaborados e extensos, também na literatura teológica latino-
americana dos panfletos vieram debates, ensaios, até chegarmos aos livros
que hoje encontram um mercado global. A tendência é de
uma literatura fragmentada de origem e estilos diversificados a uma cuja unidade se
forma aos poucos; dizendo de outra maneira, de uma literatura popular,
contextualmente enraizada na particularidade a uma mais abstrata, sistemática
que busca universalizar-se, certamente a custo de um “elitismo” que corre sempre o risco de perder contato
com suas origens. Nesta descrição não poderia deixar de mencionar o
catalizador em torno da qual o discurso teológico se arregimentou: a Bíblia.
A razão do apelo à Bíblia decorre de dois fatores principais. O primeiro
deve-se ao fato que as escrituras marcam, na
literatura ocidental, o momento quando classes subalternas (mulheres e
homens nômades, migrantes, escravos, pescadores, carpinteiros, etc.) aparecem como
protagonistas principais de uma literatura que adentrou o nível das grandes
obras literárias (Auerbach, Mimesis). Não é de surpreender que estas vozes
bíblicas ressoassem no
consciente de grupos subalternos tanto na época da Reforma quanto na América Latina. A tradução da Bíblia e sua
releitura pelos desfavorecidos lhes deram uma voz que se chocou com os
interesses das classes dominantes, eclesiais ou seculares. O segundo fator
é que a linguagem que
a Bíblia avalizou rompeu a crosta ideológica dos grupos dominantes que se propunham como intermediários dos desígnios humanos. Afirma-se assim
o direito de cada
pessoa constituir-se, em última instância, em senhora de seu destino, tendo só Deus a quem
prestar contas diretamente; afirma-se o sujeito livre! Daí a
importância da crítica ao Magistério
romano durante a Reforma (que foi o ponto nevrálgico da sola scriptura) e
do controle dos
meios de comunicação das oligarquias
e burguesias latino-americanas, apoiadas em larga medida pela hierarquia eclesiástica (maiormente Católica Romana, mas também
protestante: Alves,
Protestantismo e Repressão).
O uso da noção de liberdade
na Reforma acerca-se assim do emprego do conceito de libertação na América Latina exatamente por esta constituição da subjetividade. A
dificuldade de ver a proximidade desta conexão deve-se a tradição no entendimento de liberdade como conceito negativo (que surge
com o iluminismo escocês no século XVIII): ser livre é não ter o espaço
privado do indivíduo transgredido por outrem. Mas
na definição que
Lutero provê da liberdade em “Da Liberdade Cristã” (“Livre de
tudo e servo de todos”) o pressuposto
não é o liberalismo do século XVIII que faz a afirmação soar um paradoxo. Mas este paradoxo é possível entender considerando-se
a estrutura estamentária do medievo. Liberdade definia-se em
relação a quem está abaixo no status social, enquanto dever é a obrigação
inerente devida a quem está acima. Portanto, o paradoxo se resolve nesta
simples paráfrase: o cristão é livre em relação a quem está acima (que lhe
demanda servidão) e servo em relação a quem está abaixo (que lhe são
serviçais). O conceito de libertação, por sua vez refere-se à
liberdade do oprimido em relação a quem lhe sujeita e também do opressor que
é livre para servir a quem oprimia (Freire, Pedagogia). Assim há uma quase identidade entre os conceitos. A
diferença, no entanto, consiste no fato de libertação ser entendida como um
processo coletivo, enquanto que liberdade para os reformadores ainda é vista
primariamente em termos individuais. 1.
O projeto
colonial europeu recrutou a teologia para seus fins e
alguns de seus
melhores teólogos a isso se serviram, enquanto o caráter de
marginalidade da teologia saxônica de Lutero no início do século XVI foi
ofuscado com o passar dos
séculos e ajustado ao conformismo tradicionalista da ortodoxia protestante. Há dois séculos Schleiermacher, o
aclamado pai das teologia protestante moderna e patrono do liberalismo teológico, escrevia em sua
Doutrina da Fé (Glaubenslehre § 69): “ ... nada
de herético pode ainda surgir. De fato,
a igreja inteira-se a si mesma
e a atuação fés estranhas não têm importância alguma.
Mesmo nos limites
da igreja e nos
seus campos de
missão, no que
toca à formação da doutrina, nem
sequer contam. Se nos novos convertidos
o que lhes resta da antiga piedade, somente assim se viesse à consciência
como doutrina, seria considerado como heresia.” Mas desnecessário é dizer que para o teólogo berlinense esta hipótese não existe. Esta
passagem me parece muito interessante e reflete uma
postura que, ainda que não confessionalmente luterana (Schleiermacher
era um teólogo Reformado, i.e. de tradição calvinista), era também compartilhada por luteranos nesta
época de colonialismo triunfante ao início do século XIX.
A igreja vive de seus próprios recursos dogmáticos e nada
mais tem a aprender, ainda que resíduos de superstições permaneçam por longo
tempo, mas não afetam a doutrina. Este
é um primoroso resumo do
que poderia ser chamado “Manifesto do Colonialismo Missionário”. O Terceiro Mundo, o campo de missão, não conta, exceto como objeto de
missão e território de expansão colonial. Um século depois de Schleiermacher
a situação não havia mudado muito, embora
date do início do século vinte a emergência do pentecostalismo no norte do Brasil, que eventualmente
iria transformar a demografia eclesiástica tradicional da América Latina
e expandir- se pelo mundo. Mas então ninguém levou isso
muito a sério. O cristianismo, particularmente o protestantismo, mantinha sua
cidadela intacta no eixo norte-atlântico, e cristãos abaixo do equador eram
numericamente uma minoria, e insignificantes quanto ao acesso ao poder eclesial e teológico. Meio
século depois, quando da formação da Federação Luterana Mundial (1947) e do
Conselho Mundial de Igrejas (1948), os participantes do terceiro
mundo eram mal representados. Quanto
aos luteranos, estima-se que então seu número no
Terceiro Mundo não chegasse a 10%. Hoje pelos dados da FLM aí já se encontram
cerca de 45%; e o número continua a crescer. Os luteranos estão um pouco
atrás de outras famílias confessionais, como
católico-romanos, batistas, episcopais, presbiterianos e metodistas
(sem mencionar os pentecostais). Estes já migraram em massa. Hoje
60% ou mais
dos membros das igrejas
cristãs têm seus rebanhos em pastos abaixo do equador. Os luteranos estão seguindo, com um pouco
mais de lentidão, a mesma migração. Por que introduzi o assunto com a citação
de Schleiermacher? Porque importam
as perguntas que surgem de contextos e conjunturas específicas e não apenas as respostas, os dogmas, os sistemas. Para a Reforma, a
igreja não é
apenas a ecclesia docens, a igreja docente, mas
é sempre também a ecclesia
discens, a igreja discente, sempre a aprender de novos
contextos, novos
lugares. Lutero, no início do século XVI estava
ciente que pregava e escrevia teologia das margens de um império político e eclesial. Esta consciência de marginalidade selou sua teologia e nutriu sua rebeldia. Desde seus primeiros escritos públicos o que o marcou
foi levantar questões que lhe pareciam óbvias, mas não eram perguntadas: Por que indulgências? Por que não comungar com ambos os elementos? Por que centralização eclesial? Por que o magistério quando
temos as escrituras e a razão?
Por que o povo
não pode escolher seus líderes? Por
que usura? Por que não um
Deus misericordioso? E assim por
diante. Perguntas tais
são hoje aceitas como
óbvias, mas a seu tempo poucos viam que o rei estava nu. Há uma história que talvez vocês
conheçam. Por volta
de 1990 quando se reestrutura a geopolítica mundial com o fim
da guerra fria, havia
um grafite nos
muros da Universidade de Bogotá,
Colômbia que dizia: “Quando teniamos casi
todas las respuestas, se nos cambiaran las
preguntas.” De fato é a emergência de novas e inusitadas perguntas que
desestabilizam as respostas dadas a velhas
perguntas que já não estão
mais em pauta. 2.
À medida que o
luteranismo segue outras famílias confessionais na migração ao sul, Lutero, o
teólogo contextual por excelência, oferece trajetórias a seguir e uma força
motivadora que Hegel, que se dizia luterano modelar, chamou de “espírito protestante”;
este “espírito” não descreve um corpus doutrinal, um cânone, um magistério, mas
um procedimento, uma postura, um evento. Novos contextos trazem novas perguntas e uma disposição de procurar novas e imaginativas respostas. Todos os regimes de verdade têm seus
“cânones”, seus regimes de verdade. Assim também os têm os luteranos, como
os textos de Lutero, os
escritos confessionais, ou interpretações celebradas como
autorizativas, traindo assim o próprio espírito protestante. Novas perguntas
serão julgadas ilegítimas pelos curadores do “cânone” e as novas
respostas serão consideradas heréticas. Novas perguntas tendem a ser excluídas pelos regimes de verdade tacitamente
aceitos. Esta, então, é a tarefa que nos legou o movimento protestante que
desponta com Lutero: inquirir estes textos “canônicos” da perspectiva de
outros contextos não hegemônicos, não dominantes, mas que se fazem
necessárias j´s pelo simples fato demográfico
de uma presença significativa quando não majoritária
de fiéis em outros e novos
contextos. E talvez as
perguntas mais instigantes não surjam somente do fato que a
maioria numérica de cristãos venha a estar em contextos que a academia
europeia ou norte-americana amiúde não sabe ler, e a religiosidade,
impregnada por elementos contextuais, é considerado apenas resíduo de uma
piedade passada. O fato ainda mais importante, no entanto, é que esta maioria de cristãos
em outros e novos contextos
encontra-se nestes como minoria! Aqui a América
é a excessão, assim como
o sul da África.Tome- se a Índia, por exemplo. Cristãos, de todas as
denominações, representam por volta
de 3% da população (ainda
assim há mais cristãos na Índia que
em todos os
países escandinavos somados!), ínfima fração
num contexto de
pluralismo religioso incomparável. Mas neste quadro os luteranos são a minoria da
minoria, e isto vale também para a América Latina. Este dado demográfico é de importância para uma teologia que surgiu em um contexto de marginalidade política e econômica como
era a saxônia
do início do século XVI
quando uma maneira diferente de fazer teologia surgiu como opção marginal e
minoritária, algo muito distinto do que surgiu com as igreja territoriais na
Alemanha depois da Paz de Ausburgo (1555)
com seu cuiús régio,
eius religio, ou das
igrejas nacionais luteranas dos países escandinavos ou da Igreja
da Inglaterra. Com a chamada Paz de Ausburgo acabou-se a heresia (não é coincidência que
desapareça dos autos-de-fé na mesma data a
acusação de serem
“luteranos” os infiéis na América). Então, reencontrando seu caráter minoritário, e por isso
também revolucionário, a potencialidade da teologia luterana volta
a ser nutrida, por razões de sua
genealogia, como movimento minoritário e marginal. Aí encontramos elementos libertadores. Por
exemplo, o sincretismo é uma necessidade
tática de uma posição minoritária que queira ser contextual e que surge em
contextos de pluralismo. É típico luterano, desde o século XVI,
a discussão sobre assuntos que são adiaphora (dispensáveis) como sendo
algo que pode
ser bom (bene esse) ainda que não da
essência (esse)? Como ritos
ou práticas culturalmente enraizadas e religiosamente distintas. Perguntas assim que destes contextos nos vem são sérias
e não raro inusitadas. No entanto, podem
ser elaboradas e examinadas dentro de uma
diferente leitura, diferente dos textos canônicos que se endureceram no forno do tempo. Em todas estas conjunturas—na Ásia,
na África, na
América Central, no Caribe
e na América do sul—grupos se reúnem e buscam assessoria para
formular a relevância da teologia para
seus lugares e seus
desafios. Há uma afinidade com o luteranismo nestes grupos de base. De minha experiência com esses grupos,
não se trata de se a
teologia tem ou não uma fachada confessional ou vinculação institucional. Mas trata-se de
uma busca de linguagem
para expressar a fé contextualmente relevante. E toda
teologia é contextual; a realidade vem
junto com o texto.
Como disse o poeta
Vinicius de Moraes, “ninguém é universal fora
de seu quintal”. 3.
Contextualização: A
teologia tem a tarefa de detectar no presente coisas que guardamos das
representações do passado e sua relevância para o momento e onde este se situa.
Esta é uma lição de contextualização de que Lutero era um mestre e disse:
“somente a experiência faz do teólogo”. A tarefa da teologia é exatamente a de ver
como a Bíblia
e a tradição se confrontam com uma dada conjuntura. Certamente
não é a tarefa prioritária fazê-lo
por motivos antiquários ou arquivais, ou seja, descobrir origens e classificá-las. Isso se pode
fazer de qualquer parte onde se tenha
acesso às fontes e à mediada que se as têm. Isso é o que
se tem chamado
de “mal de arquivo” (mal d’archive: Derrida), quer dizer, usar o passado
para autenticar o presente. E isso
implica um desprezo do presente e dos lugares que ocupa (e o
presente sempre ocupa
lugar, ou não é presente/dádiva). Isso
é o que fazemos quando usamos
categorias que outros contextos elegeram como centrais e por mímica
os repetimos em completa
abstração do presente situado em um lugar,
nosso presente. Isso sucedecoma linguagem tipicamente luterana sobre
justificação, sobre os dois
reinos, sobre lei
e evangelho, etc..
E o que uma vez foi libertador agora emudece, cala a linguagem local, suprime o vernáculo fica
engessado. A importância do luteranismo me parece
ser outra. É conhecer táticas e estratégias do passado para
iluminar lutas do presente. Explico-me. É preciso, por
exemplo, fazer com que aquele que ousou
traduzir a mensagem da Palavra de Deus ao vernáculo seja ele mesmo
rendido aos vernáculos. Um texto de 1525 sobre “Como Cristãos deveriam
considerar Moisés” que é escrito em meio a sua luta
com alguns anabatistas, que como alguns
fundamentalistas hoje, citavam as escrituras dizendo: “Esta é a Palavra de Deus”, revela
um Lutero contextual como pouco se ouve. Ele diz: “certamente esta é a
palavra de Deus mas vocês não são o povo a
quem ela está proferida.” Há que escutar a palavra de Deus dirigida a um povo específico, a uma situação particular. Nisto Lutero, de fato,
já está começando a falar outras línguas:
portugês, espanhol, mandarim, finlandês,
suaíli, inglês, malayalam, e assim por
diante, sempre tentando ter sempre mais fluência em cada vernáculo. Como bem colocou
o bispo Pedro Casaldáliga, ”A Palavra universal só fala dialeto”. Esta então é uma das tarefas: aplicar nos contextos,
nas distintas conjunturas sociais e eclesiais a própria prática que definiu
culturalmente a reforma luterana, e fazê-lo de maneira compreensível. Minha
opinião é que
é isso que
intencionava dizer o bispo
sueco Anders Nygren quando em sua
palestra na abertura da primeira assembleia da FLM disse:
“Não de volta
ao passado, mas avante
a Lutero.” [forward
to Luther] 4.
Transfiguração: Não
é a repristinação confessionalista, mas a “transfiguração” de Lutero que importa
ao luteranismo quando fora de seu berço natal. Então outra tarefa que se impõe à minorias
contextuais é curar- se do “mal de arquivo” que diz que só temos legitimidade
se o fizermos como os alemães, ou suecos, ou norte-americanos o fazem e têm feito. Lutero precisa ser
“transfigurado”. Isso é o que acontece na
história bíblica da transfiguração (Mt
17) quando Jesus aparece a
alguns dos seus discípulos falando com Moisés e Elias. Jesus
nunca foi Elias
nem Moisés e até discordou deles, mas foram eles que se transfiguraram em Jesus sem que
esse rendesse sua identidade. É preciso ver
o Lutero transfigurado nos “Luteros” de hoje sem que isso os tire de seus próprios desígnios e seus próprios lugares, sem que
sejam contaminados pelo
mal de arquivo. A passagem de Mateus sobre a transfiguração é
precedida pela confissão de Pedro: “Tu és
o Messias.” A próxima cena é Jesus
contanto de seu destino e Pedro intervém ao que Jesus
responde: “Arreda! Satanás.” Pedro havia lido
Jesus com o catequismo ou
o cânone que tinha
(Moisés, Elias e os profetas): Jesus deveria ser como Moisés ou como Elias. Pedro fez a correta confissão, mas não soube ler o
contexto. Isso é
a definição teológica do demônico:
correta dogmática e inepta contextualização. A transfiguração é a
história
de como o passado deve
se metamorfosear (metamorphethe,
esta é a palavra traduzida como “transfiguração”) para dentro dos
contextos presentes e não o contrário. Lutero também metamorfoseou Paulo e Agostinho, mas
não se fundiu a eles; vestiu o manto deles, mas na
sua própria pele. É assim que Lutero se transfigura em quem hoje
ainda diz como
ele diante do
imperador que exigia que recantasse seus ensinos: “Se não me convencem pelas escrituras ou por
argumentos da razão não renuncio. Isto sustento, de outra maneira não o posso. Que Deus me ajude.” 5.
Inovação: A verdadeira
posição luterana não está na letra, mas no espírito. A letra sustém, mas o evangelho
renova. As obras de Lutero devem ser lidas e examinadas com cuidado para que então
os livros possam ser fechados e o evangelho aberto. Então há uma
terceira tarefa programática. É preciso ter
coragem de inovar ainda sem destruir o velho. A parábola de Jesus é pertinente à nossa tarefa: “Todo escriba versado no reino
dos céus é semelhante a um pai de família
que tira de seu depósito cousas novas e
cousas velhas”. (Mt 13:52) Os arquivos serão mantidos e sempre haverá entre
nós versados escribas que deles sacará relíquias preciosas. Mas há também que
ousar. Esta é a herança de Lutero que sabia da
distinção entre tradição e tradicionalismo.
“Tradição é a fé viva dos que já morreram, tradicionalismo é a fé
morta dos que vivem” (Pelikan, editor geral das obras de Lutero
em inglês). Com todos os defeitos que
o reformador tinha
e admitia, falta
de ousadia não era
um deles. Ainda não
somos luteranos até
ousarmos perguntas que nos remetem além dos cânones dominantes com suas
respostas antiquadas. Estas respostas são
como que se alguém
encontrasse uma chave na rua, mas
não tinha a menor ideia que fechadura ela abriria. E este alguém achasse que
a chave/resposta é
tão importante que
resolveu construir uma fechadura em que a chave funcionasse. Assim
ela funcionou, mas não abriu
absolutamente nada. Assim
são os tradicionalistas e confessionalistas: construtores de fechaduras para chaves obsoletas. Na América Latina
esta opção teológica minoritária foi assumida por muitos teólogos da
libertação. Entre estes destaco o jesuíta uruguaio Juan Luís Segundo que
transfigurou Lutero ao propor que uma teologia libertadora deveria libertar a teologia. Ele
sabia o que também Lutero sabia quando ao início do movimento da
Reforma, foliando com
seu nome, assinava cartas e escritos como eleutherios, que em grego significa o libertador liberto. Estas são as tarefas programáticas que nos lega
a teologia luterana como uma postura minoritária e
libertadora: contextualização, transfiguração e inovação. E esta é uma tarefa que se incumbe apenas à minorias
que se encontram às margens dos saberes e poderes. 6.
Ateologia de Lutero
está para a contextualização, transfiguração e inovação assim como a
agricultura está para a colheita ou o casulo para a borboleta. O desafio está
quando a colheita fracassa ou o casulo sufoca a larva. O segundo objetivo é precisamente de desenvolver
linhas de pesquisa que ofereçam abordagens prioritárias a temas da
teologia luterana, particularmente de
Lutero, de relevância para a América Latina e ao Brasil em
particular. Esta me parece seja a tarefa principal para o ocupante da cátedra. De momento presumo, em base
ao que conheço da teologia de Lutero e da realidade Latino Americana, que há três eixos temáticos a serem
inicialmente desenvolvidos. Eixos Temáticos 1.
Justificação e
escatologia estão intimamente relacionados nas obras de Lutero, mas pouco há
se feito em decodificar as dimensões espaciais e sociais destas doutrinas. O primeiro eixo
temático parece ser bastante óbvio
à primeira vista. Trata-se do tema central da Reforma, a
justificação por graça mediante a fé. Mas esta deve ser tratada não como
outro tema (locus) dogmático, mas
vista radicalmente sob uma perspectiva escatológica. A justificação neste
sentido não é uma “doutrina”, mas descreve uma experiência
limítrofe que é ao mesmo tempo “morte” e dádiva. Lutero costumava usar
esta linguagem paradoxal e extrema ao se referir à justificação. E o fazia
em termos muito realistas. Ela mata para
dar vida e
dá vida quando mata. Mas como entender isso sem espiritualizar? Lutero mesmo vivia
e respirava um clima apocalíptico que é sempre
uma situação existencialmente limítrofe, assolado pelas epidemias. Sociedades opulentas hoje tem dificuldade de se relacionar com isso,
mas que hoje
se compara a AIDS,
especialmente na África subsaariana. A justificação é hoje em muitas teologias ditas
luteranas espiritualizada e desencarnada e a
escatologia deferida/postergada para uma data
incerta no calendário ou para um
místico nunc eternum,
(agora eterno). A
palavra eschaton
no Novo
Testamento leva três significados distintos que nos textos
originais são mesclados. Pode referir-se a
um limite espacial como a fronteira de um território ou a mítica concepção do fim do mundo depois
dos mares; pode também referir-se ao tempo
e seus limites; assim como pode
ser usado para designar o último em
uma escala de
classificação. Mas o sentido
temporal é o único que tem sido usado na modernidade
ocidental. Mas para a
América Latina (assim como outras partes do terceiro
mundo onde massas vivem este
apocalipse) este tema
assume um significado especial e muito real.
Questões de vida
e morte, dádiva e passagem estão inscritas em cada passo
da existência cotidiana de agricultores sem-terra, de
crianças de rua, de favelados, de povos indígenas
em que o eschaton está na cerca da
fazenda ao lado, na próxima esquina, ou na arma assassina; aí a morte
é real e a
celebração da vida
contagiante. Refletir a justificação sob
esta perspectiva significa tomar conhecimento da importância de
experiências escatológicas hodiernas. A saber: questões que vão desde
enfermidades por contágio (como um vírus e bactérias que transgressam os
limites [ta eschata] epidérmicos do
corpo, bem assim como também o fazem medicamentos que trazem saúde, soteria, salvação) até questões pertinentes à migração em espaços geopolíticos, fronteira são transgredidas e aí há morte e há vida. É preciso explicar
justificação na vida cotidiana. Estas são
experiências escatológicas em
que justificação e condenação,
libertação e submissão são os polos da experiência. Pensar justificação como
dádiva e morte assume, portanto, relevância peculiar nos contextos de vida
subalterna características da realidade de opressão e marginalização. 2.
A doutrina dos dois
reinos ou regimentos é uma das doutrinas características do jovem Lutero que
foi assimilada e difundida por outros reformadores (p. ex. Bucer, Melanchthon,
Calvino), mas ela não chega a enfocar a distinção que Lutero mais tarde faz entre
economia (oeconomia) e política (politia). Aí reside a sua contribuição
especialmente a sociedades, como do terceiro mundo, onde estas esferas da
vida real são claramente discerníveis, ao contrário da modernidade ocidental
onde estas se imbricam a ponto de se confundirem. O segundo eixo
temático trata do outro assunto fundamental da Reforma que desde há um século
tem sido chamado de “doutrina dos
dois reinos” [Reiche/ Regimente] (o que prefiro traduzir como “regimes”). Mas o tratamento que este tema
tem recebido na Europa
e nos EUA vai
desde enquadrar o problema como
uma relação de lei e evangelho, até fé e política, ou mesmo igreja e
estado. Mas a distinção de regimes se refere a uma questão mais ampla que é a distinção entre fé e amor, o que se recebe e o que se
dá, entre recepção e ação,
ou como Lutero
insistia, entre bem- aventurança ou beatitude (pela
qual nada fazemos) e santidade (que resulta de nossas obras de amor). Mas o
que é importante nestas reflexões que
Lutero produziu é
a sutil e
a precisa distinção que ele nos anos
30 do século
XVI faz entre
política e economia, avançando um tema que só será
retomado séculos depois com Hegel, Marx e no século
XX por Hannah Arendt e Gayatri Spivak. A importância disso para América Latina já foi
enunciada pela distinção que Paulo
Freire faz entre
conscientização e
produção, e mais
recentemente na tipologia que o antropólogo Roberto DaMatta elaborou
com as metáforas da “casa” e da “rua”. O nascedouro desta
questão pode ser remetido à Aristóteles com sua
distinção de duas
das três faculdades humanas: praxis
e poiesis (a terceira sendo
theoria) que
está na raiz
dos conceitos de
política e economia desenvolvidos por Lutero. Na patrística grega
(p.ex. em Basílio de Cesaréia) esta distinção ainda
é mantida, mas
desaparece no período medieval para ser então retomada por
Lutero ao distinguir com precisão entre
oeconomia e politia, que corresponde a
distinção entre desejo e interesse. Esta é uma distinção de extrema importância para o pleito
teológico latino-americano. Os outros reformadores seguiram Lutero
na distinção de regimes, o espiritual e o secular, mas nenhum
outro chegou como Lutero a
descrever a igreja
como este evento que sucede entre a política e a economia (nos
sentidos clássicos dos termos), na adjacência de ambos e emprestando de ambos,
mas não se rendendo a nenhum.
A igreja se demoniza quando se rende à política, com seus interesses, e se idolatriza quando se adapta
à economia, na busca
por atender e mitigar desejos. Mas a igreja, que para Lutero, não possui um procedimento próprio enquanto é o espaço do ócio, do Sábato hebreu, precisa
emprestar procedimentos da política na sua pregação e da economia na sua sacramentalidade enquanto subsiste neste mundo. 3.
“Somente a cruz é
nossa teologia” é o mais sucinto e claro manifesto da reforma luterana (desde
1517-18) e continua sendo para quem a cruz é o símbolo da vida cotidiana. Mas
a interpretação deste manifesto é devidamente escorada pelo maior consenso
ecumênico jamais alcançado—O Concílio Ecumênico de Calcedônia (451). O terceiro
eixo a ser
desenvolvido e que
permite relacionar os
dois primeiros é a cristologia de Lutero, sua
interpretação do Concílio Ecumênico de Calcedônia (451)
e sua intrínseca vinculação com a teologia da cruz. Este
tema, para América Latina, não carece
de mais justificação senão
a já produzida por vários
teólogos/as das mais diversas origens confessionais que
se voltam a Lutero quando este é o assunto, como o fazem
Jon Sobrino e Leonardo Boff, por exemplo. Mas implicações desta
cristologia vão muito
além e são muito mais relevantes do que até
agora tem se tido e são ainda mais radicais. O que tem
Cristo a ver
com o sofrimento? Exemplo de persistência? Lição
sobre o sentido vicário da dor?
Perdão dos pecados? Solidariedade com o povo sofrido? Na verdade Lutero é mais radical. Já em 1528 quando
escreve sua “Confissão” o Reformador desenvolve o que ele chamou do terceiro
modo de presença de Cristo
(além do Jesus
histórico e da presença real no
sacramento). Em resumo o que ele diz é que a união hipostática da
Fórmula de Calcedônia exige a afirmação de que Cristo esta, segundo a carne
(senão a nossa fé é falsa, o afirmou), transcendendo tudo, mas estando mais perto de cada coisa que cada coisa está
de si mesma, quer dizer,
mesmo na morte,
ou acima de tudo na morte.
Então à minha pergunta acima sobre a relação de Cristo com o sofrimento tem
uma simples resposta: essencial identificação. É o
próprio Cristo que sofre na carne do sofredor. É o próprio
Cristo que está enterrado na tumba de quem morreu.
E para Lutero,
isso não era uma metáfora. Era literal. A segunda consequência é que se Deus está em Cristo segundo a carne em todas as coisas, toda natureza também se faz corpo de Cristo. Isto tem implicações para a questão ambiental que não são
apenas morais e éticas, mas profundamente vinculadas à questão da revelação, e, sobretudo,
da revelatio sub contrariis, a revelação no
seu oposto.
E a terceira implicação disso é que para
Lutero, como ele
desenvolve em “Dos Concílios e da Igreja” (1539), a
realidade de Deus em Cristo é híbrida. Não há uma essência ou uma identidade
que possa ser isolada, muito menos
manipulada. O híbrido é o que
transita entre identidades. Não
é uma nem outra e ao mesmo
tempo as duas,
ou mais de duas.
A literatura pós-colonial define a hibridismo como caraterística mais relevante dos povos
subalternos. Então esse
é o Cristo: Deus,
um criminoso condenado e executado em
uma cruz, tudo de
acordo com as
leis e autoridades da época. E
assim transita entre céu e inferno
enquanto faz sua morada entre
os mortais. Não me iludo. Quando cruzarmos o quinto centenário
da Reforma, talvez a maioria dos Luteranos já se encontre no sul do planeta. Mas a hegemonia teológica tem uma
inércia que levará muito mais tempo para que o sul
tenha sua leitura de Lutero respeitada e validada, mas ela está ocorrendo onde
teologias são
contextualizadas, transfigurações subversivas ocorrem e surge
a coragem de inovar. Esta
leitura não é nem em conteúdo, nem
em método o que
hoje se faz
no mundo norte-atlântico. É algo híbrido transitando entre o resultado
da pesquisa em Lutero que se tem feito por séculos e sua transfiguração em novos contextos sem medo de ousar vestir
o manto de Lutero, mas na nossa própria pele. Um filósofo alemão do início do
século XIX que
se declarava Luterano de boa cepa,
com o nome
de Georg Wilhelm
Friedrich Hegel, em um de seus axiomas disse:
“Quando o absoluto cai na água, vira peixe.” (Wenn das Absolute ausgleitet und aus
dem Boden, wo es herumspaziert, ins Wasser
fällt, so wird
es ein Fish,
ein Organisches, Lebendiges. HW 2: 543)
Parafraseando: quando Lutero cai no Brasil, vira brasileiro. E assim se
dirá para toda
América Latina, África e Ásia. ¨¨¨ Vítor Westhelle, Ph.D., Profesor de Teología Sistemática en Lutheran School of Theology en Chicago, EEUU;
Cátedra de Investigación sobre Lutero en la Escuela Superior de Teología
(EST) en São Leopoldo, Brasil; Profesor Honorario de la Universidad Aarhus, Dinamarca. Recibido: 10 de julio de 2016 Aprobado: 24 de agosto de 2016 |
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